Alexandre Gonçalves – O Estado de S.Paulo
Cerca de 6% da população mundial sofre de discalculia do desenvolvimento, transtorno neurológico que dificulta o aprendizado da matemática. A incidência é praticamente a mesma da dislexia, problema análogo – bem mais famoso – relacionado à leitura e à escrita. Pesquisadores brasileiros e estrangeiros querem trazer a discalculia do desenvolvimento para a ordem do dia.
Washington Alves/Light Press
Terapia. A psicopedagoga Miriam Moraes (dir.) indicou o método Kumon para Sheila Guerra
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Há poucas semanas, uma das principais revistas científicas do mundo – a Science – publicou um artigo sobre a doença. O texto recordava perdas sociais e econômicas para comprovar a gravidade do problema.
Na Grã-Bretanha, por exemplo, estimou-se em R$ 6 bilhões os custos anuais do mau desempenho matemático entre os ingleses. O trabalho também apontava o caráter de transtorno negligenciado da discalculia. Desde 2000, a doença mereceu R$ 3,6 milhões em pesquisas do governo americano. No mesmo período, a dislexia recebeu quase R$ 170 milhões.
“E há trabalhos que mostram que o impacto da discalculia é, pelo menos, tão grande quanto o da dislexia”, diz Vitor Haase, do Laboratório de Neuropsicologia do Desenvolvimento da UFMG. “Mas há uma questão cultural: as pessoas não valorizam tanto a importância da matemática quanto a de ler e escrever.”
Contextos. Para que uma criança seja diagnosticada com discalculia do desenvolvimento, é necessário comprovar que sua dificuldade no aprendizado da matemática não nasce de uma deficiência intelectual – que comprometeria outras áreas do conhecimento – ou de problemas afetivos. Também deve ser descartada a hipótese de que condições sociais concretas – como um ambiente de vulnerabilidade em casa ou na escola – bastariam para explicar o transtorno.
José Alexandre Bastos, chefe do serviço de Neurologia Infantil da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), sublinha que os diagnósticos da discalculia do desenvolvimento são sempre feitos por uma equipe multidisplicinar que costuma incluir um neurologista, um neuropsicólogo, um pedagogo e um fonoaudiólogo.
“Vale a pena lembrar o impacto do transtorno em reprovações, abandono escolar, bullying, além de prejuízos à autoestima da criança”, afirma a coordenadora do Laboratório de Neuropsicologia da Unesp de Assis, Flavia Heloisa dos Santos. Há vários anos pesquisando o tema, Flavia descobriu que a música pode ser uma poderosa ferramenta para a reabilitação neuropsicológica de crianças com o problema.
Terapia. O tratamento da discalculia não envolve drogas, mas treinamento matemático. Só nos casos em que a criança tem transtorno de déficit de atenção e hipertatividade (TDAH) o médico costuma receitar algum medicamento. “Mas é para tratar o TDAH”, afirma Bastos. “Cerca de 40% das pessoas com dislexia e discalculia tem TDAH.”
Casos concomitantes de dislexia e discalculia também são comuns. Sheila Guerra, de 11 anos, é um exemplo. Como reforço à escola, ela estuda matemática e português em uma unidade que aplica o método Kumon, em Belo Horizonte. Lá, realiza o treinamento necessário para superar as duas condições. Conta com o acompanhamento da psicopedagoga Miriam Moraes, que afirma que ela deve superar a discalculia em até um ano.
Ruth Shalev, do Centro Médico Shaare Zedek, em Israel, publicou trabalhos comprovando que 47% das crianças que tratam a discalculia conseguem superar o problema. Mas o estudo mostrou que a taxa de sucesso cresce com o diagnóstico precoce.
PARA ENTENDER
“Discalculia não é dificuldade para fazer cálculos complexos”, diz o neurologista José Alexandre Bastos. “É a incapacidade de lidar com operações triviais.” Os problemas ocorrem em três campos: compreensão dos fatos numéricos (adição, subtração, multiplicação e divisão simples), realização de procedimentos matemáticos (como divisão de números grandes ou soma de frações) e semântica (compreensão da linguagem usada para formular problemas). Ao minar os fundamentos, a discalculia impede a aquisição de conhecimentos mais complexos.